segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Minha doce esquizofrenia

por Laura Pimentel

Dror, acorde! Vamos, garoto! Eles estão vindo atrás de nós, precisamos fugir agora! O que houve? Você caiu e ficou desacordado, eu estava desesperada, achei que tivesse morrido. Eiii, calma aí, Chaya! vamos logo ou iremos ficar para trás. Chaya é linda, tem cabelos longos, sorriso fácil, olhos negros, uma personalidade difícil, e um gosto peculiar para uma jovem de dezessete anos. Carregando o sonho de ser professora, tinha um sonho maior ainda, que era dar aulas de graça para pessoas que não tiveram chances de estudar. Mas há exatamente duas semanas tudo mudou para ela, e para mim também. Foi quando os militares nazistas começaram a revistar as casas de nosso bairro pacato na nova capital Bratislava, onde éramos vizinhos em um bairro conhecido como Fischertorgasse. Naquela manhã ouvi os gritos, eram dela, estava resistindo à prisão, pois a levariam para algum campo de concentração, eu não contive minha fúria fui na sua direção com a intenção de salvá-la, mas de nada adiantou. Também, eu e meus pensamentos de super-herói! Nos levaram para um trem que estava à espera de mais uma carga de mortos vivos, todos ali sabiam que iriam morrer mais cedo ou mais tarde, e o pior de tudo era pensar que seria da forma mais cruel que nossas mentes jamais pudessem imaginar.
Chaya é linda, tem cabelos longos, sorriso fácil, olhos negros, uma personalidade difícil, e um gosto peculiar para uma jovem de dezessete anos. 
Mas quem diria que seria daquela maneira horrível que eu iria ter meus minutos de coragem e conversaria com Chaya, eu amo ela, faria qualquer coisa para salvá-la. Então tomei coragem e disse algumas palavras trêmulas: Ei, moça, não tema, eu estou contigo, prometo que não te deixarei. Ela chorou, mas não respondeu, somente me olhou no fundo dos olhos depositando em mim uma confiança inabalável. Quando chegamos em Auschwitz ii-Birkenau, fiquei desesperado com gritos de horror e gemidos vindos dos pavilhões, minha coragem desapareceu no mesmo instante. Naquele momento tive a certeza de que está seria a última vez que veria Chaya, e estava certo.
Me levaram para um pavilhão com outros homens e mulheres que estavam na fila para serem mortos, crianças sendo arrancadas de seus pais para morrerem bem ali na sua frente. Os militares entravam lá somente para chamar para matar ou trabalhar, comia somente uma vez ao dia sem reclamar. Em uma noite fria fui surpreendido por choro de criança, quando me deparei vi uma senhora esconder seu filho que aparentava ter uns seis meses de idade debaixo da cama enrolado em lençóis que ela pegou de outros prisioneiros. Mas não adiantou por muito tempo, a criança estava com fome, chorava incessantemente, até que o guarda noturno ouviu entrou com toda sua ira arrancando o bebê de seus braços e estrangulando-o bem ali na frente daquela mãe que lutava pela sobrevivência.



Todos os segundos que estive lá pensei em Chaya, em como estaria a minha boneca linda dos olhos negros como a noite, aquela garota sonhadora que eu amo tanto pode não estar mais viva, e eu delirando em minha insana esperança de sair daqui e dizer a ela o quanto a amo loucamente. Mesmo em meio a tantas crueldades e sem motivos para sonhar, eu imaginava seu rosto sorrindo para mim. Naquela noite tive a breve ideia de fugir dali, conversei com alguns prisioneiros, me disseram que era muito arriscado; afinal, muitos já haviam tentado e foram pegos e torturados até a morte, como se estivéssemos em condições de escolher qual forma de morrer era a mais digna. Foi quando, no amanhecer, um prisioneiro de outro pavilhão me falou que um grupo estava se preparando para a fuga na madrugada, ou seja, eu teria menos de vinte e quatro horas para conseguir escapar antes da próxima fila de prisioneiros morrer, pois eu era o número 1387 e restavam apenas cem para chegar minha vez.
Quando chegou a madrugada não pensei duas vezes, fiquei observando a movimentação dos guardas. De repente um deles se distrai quando é chamado por um colega, neste breve segundo eu saí correndo, tentando ser o mais silencioso possível para que não me vissem, ou estaria morto. Por alguns minutos deu certo, mas enquanto corria escutei os gritos de uma mulher. Parecia ser de Chaya. Fiquei extasiado tentando localizar a voz que ecoava em meus ouvidos entrando em minha mente, me levando para sua direção, quando em meio ao corre-corre sinto minha perna adormecer e percebo que levei um tiro. Entro em total pânico e acabo desmaiando.



Penso que estou sonhando pois escuto uma voz me chamando e tenho certeza que é Chaya, quando acordo vejo ela em minha frente, em nenhum momento cheguei a imaginar que ela poderia ser uma daquelas prisioneiras que iriam fugir, ou melhor, tentar sobreviver no meio da perseguição de tiros e decapitações que estavam acontecendo ali. Vamos! Corra ou iremos morrer! Começamos a correr sem parar. Chaya, eu preciso te dizer algo, achei que não iria mais te ver. Você está bem? Eles te machucaram? Pare de falar, Dror! Precisamos sobreviver a este massacre, depois que tudo isso acabar conversaremos. Tentei mais uma vez falar com ela, eu não estava conseguindo caminhar, minha perna doía muito, eu não queria que ela morresse por minha causa porque se continuássemos juntos eles iriam nos alcançar e matar a nós dois, então paramos por um segundo e fiz um pedido a ela: Chaya, por favor, me deixe ficar, vá você, continue fugindo e não olhe para trás,eu não quero perder você, eu...
Não deu tempo de falar nada. Ela levou um tiro no peito enquanto olhava fixamente para meus olhos com um pedido de socorro estampado em seu rosto, eu a amava mais do que tudo em minha vida, agora sentenciada à morte. Não tinha mais para onde fugir, tive que me entregar. Me pegaram pelos braços me jogando no caminhão de mortos que iria ser descarregado em outro campo, o mais doloroso foi ter que ir ao lado dela morta em meus braços, apesar de que não seria por muito tempo. Por um instante eu viajei no tempo e lembrei de todas as vezes que via ela passar em frente a minha casa, eu ficava a observando, imaginado uma vida a seu lado, seu nome era lindo: Chaya, o nome da vida. O significado de minha vida, ou breve vida de dezesseis anos.
Ela não sai da minha cabeça tenho certeza que ainda vou encontrá-la em meu subconsciente, em um lugar separado só para nós dois e vou dizer a ela o quanto a amo.
Hoje aos trinta anos, descobri o significado de meu nome: Dror quer dizer ‘pássaro da liberdade’. Liberdade essa que nunca tive vivendo enclausurado dentro de minha mente, dentro de uma clínica psiquiátrica. A única liberdade que tenho é a de viajar em minhas loucuras, que prefiro chamar de longas e insanas viagens, posso ir para onde eu quiser em meus delírios, mas sem escolher o destino. Ah, Chaya...ela não sai da minha cabeça, tenho certeza que ainda vou encontrá-la em meu subconsciente, em um lugar separado só para nós dois e vou dizer a ela o quanto a amo. Enquanto este dia não chega, eu te levo no fundo dos meus olhos para dentro da minha memória, e sigo viagem na minha doce esquizofrenia.

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